*Texto escrito por Lucas Garcia, aluno da graduação de Psicologia da Faculdade Pitágoras de São Luís/MA, e gentilmente cedido pelo próprio autor para a publicação aqui. Muito obrigada pela valiosa contribuição, Lucas :)
“Se alguém
Já lhe deu a mão
E não pediu mais nada em troca,
Pense bem, pois é um dia especial”.
A princípio, essa música possui uma riqueza singela pra mim. Pois ao mesmo tempo em que ela me permite refletir sobre a vivência da plenitude do amor e/ou amizade através da canção, me faz refletir sobre a escassez de “dias especiais” na contemporaneidade, que são representados através da escassez de afeto, de encontros genuínos, de generosidade, etc. Isto é o que podemos denominar de “dias sem cor”, caracterizados pelo narcisismo, hedonismo, niilismo, e diversos outros “ismos”, que se fazem presentes em nossa sociedade. Em decorrência disso o ser humano têm criado barreiras, bloqueios e mecanismos de defesa para/ao relacionar-se com o outro, isto é, quando se busca essa experiência, devido à liquidez das relações que se caracterizam pela falta de confiança, afeto, reciprocidade, etc.
“Sonhei que as pessoas eram boas
Em um mundo de amor
E acordei nesse mundo marginal.”
Martin Buber, filósofo e teólogo, desenvolveu uma filosofia baseada no diálogo/encontro genuíno, compreendendo o homem a partir das múltiplas relações concretas que o ser humano estabelece com os outros seres no mundo. A filosofia do diálogo de Buber (2010) nos fala sobre um modo de olhar o homem como sendo constituído de forma relacional, ou seja, para o pensamento dialógico, o homem só é na relação concreta com o outro no mundo e, a partir dessa relação. Para tanto, Buber (2010) fala que a nossa atitude pode ser dupla diante do outro, existindo, então, dois modos ontológicos de se relacionar com o mundo. O modo EU-TU e o modo EU-ISSO. O modo EU-ISSO é a forma de ser fática, objetiva e explicativa, é o modo que opera em uma racionalidade utilitarista, uma vez que é uma relação entre sujeito e objeto, na qual o sujeito manipula e usa o objeto. Estabelecer uma relação EU-ISSO com o outro é tomá-lo como coisa, como algo a ser manipulado, manuseado, conceituado e rotulado.
Esse modo de relação e de encontro tem se perpetuado nas sociedades contemporâneas, muito bem representado pelo pensador e filósofo Zygmunt Bauman em suas obras literárias. Já o modo EU-TU, se caracteriza pela forma de ser facultativa, atual e presente, que emerge no fluxo da vivência imediata de um TU, portanto, de uma alteridade radical e irredutível. Isso quer dizer que na relação EU-TU não há manipulações ou explicações, mas sim a partilha gratuita e despretensiosa de sentidos, uma inter-afetação, uma experiência vivida com o outro, na qual ambos saem transformados. Para Frankl, não é diferente. Para ele, as relações são fundamentais, pois proporciona a realização de sentidos através dos valores vivenciais e atitudinais. Os valores vivenciais podem ser encontrados na vivência de uma situação ou nos encontros humanos (é importante ressaltar que aqui estamos falando dos encontros em sua forma genuína, quando há prazer e intencionalidade nas duas partes – excluindo, então, os relacionamentos abusivos, nos quais há “prazer” em uma parte e sofrimento e angústia na outra).
Algumas pessoas associam os valores vivenciais apenas ao amor encontrado nos relacionamentos afetivos – o que é, de fato, uma forma reducionista de conceber os valores vivenciais. Eles podem estar presentes em outras situações, tais como a experiência de um momento único, a apreciação de uma paisagem, obra de arte, ou em um encontro genuíno com outro ser humano, como é descrito pela música – “mas te vejo e sinto o brilho desse olhar, que me acalma e me trás força pra encarar tudo”. Já o valor atitudinal diz respeito à atitude tomada por nós quando estamos diante do sofrimento inevitável – diante do qual não vemos possibilidade de criar algo para o mundo ou de receber dele. Viktor Frankl, em seu livro Em busca de sentido, relata que mesmo em situações de sofrimento extremo, em situações em que não parece haver esperança, diante de uma fatalidade que não pode ser mudada – ainda assim podemos encontrar sentido. Nesse caso, quando não podemos criar ou receber algo do mundo, somos então desafiados a mudar a nós mesmos: mudando a nossa postura diante da situação em questão.
Portanto, podemos ter uma atitude diante dos “ismos” e das relações líquidas, através dos valores vivenciais. Se permitindo ter um contato pessoal com o outro, genuíno e verdadeiro, como diz a música – “mas te vejo e sinto o brilho desse olhar, que me acalma e me traz força pra encarar tudo”.
“Mas te vejo e sinto
O brilho desse olhar
Que me acalma
E me traz força pra encarar tudo...”
Concluindo, deixo uma pergunta para reflexão: qual é a sua responsabilidade na desordem da qual você se queixa?
Referências:
- Frankl, V.E. (2011). A vontade de sentido: fundamentos e aplicações da Logoterapia. São Paulo: Paulus.
- Buber, M. (2010) Eu e Tu. São Paulo: Centauro.
* Link do youTube para a música:
https://www.youtube.com/watch?v=IVHayTegflg&feature=youtu.be
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